quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A Religião e o Jornalismo São as Únicas Forças Verdadeiras


Todas as artes são uma futilidade perante a literatura. As artes que se dirigem à visualidade, além de serem únicos os seus produtos, e perecíveis, podendo portanto, de um momento para o outro, deixar de existir, não existem senão para criar ambiente agradável, para distrair ou entreter — exactamente como as artes de representar, de cantar, de dançar, que todos reconhecem como sendo inferiores em relação às outras. A própria música não existe senão enquanto executada, participando portanto da futilidade das artes de representação. Tem a vantagem de durar, em partituras; mas essa não é como a dos livros, ou coisas escritas, cuja valia está em que são partituras acessíveis a todos os que sabem ler, existindo ali para a interpretação imediata de quem lê, e não para a interpretação do executante, transmitida depois ao ouvinte. 
As literaturas, porém, são escritas em línguas diferentes, e, como não há possibilidades de haver uma língua universal, nem, se vier a havê-la, será o grego antigo, onde tantas obras de arte se escreveram, ou o latim, ou o inglês ou outra qualquer, e se for uma delas não será as outras, segue que a literatura, sendo escrita para a posteridade, não a atinge senão, na maioria dos casos, em referências indirectas, nomes sem sentido, numa vida de citação traduzida e dicionário. 
O jornalismo, sendo literatura, dirige-se todavia ao homem imediato e ao dia que passa. Tem a força directa das artes inferiores mas humanas, como o canto e a dança; tem a força de ambiente das artes visuais; tem a força mental da literatura, por de facto ser literatura. Como, porém, o seu fim não é senão ser literatura naquele dia, ou em poucos dias, ou, quando muito, numa breve época ou curta geração, vive perfeitamente conforme com os seus fins.
Concedo, disse, que Ésquilo seja hoje, ainda que translatamente, uma influência. Nego que uma influência translata possa ser uma influência literária. É para nós como um homem agradável que nos fala uma língua estranha. Como é agradável, admitimos que nos esteja a dizer coisas simpáticas. Como, porém, o fim de dizer é ser entendido, e o não entendemos, há erro em tudo o que está nisto. 
A religião e o jornalismo são as únicas forças verdadeiras. Quando se diz que o jornalismo é um sacerdócio, diz-se bem, mas o sentido não é o que se atribui à frase. O jornalismo é um sacerdócio porque tem a influência religiosa dum sacerdote; não é um sacerdócio no sentido moral, pois não há, nem pode haver moral no jornalismo, que serve o momento que passa, em o qual não cabe, nem pode caber, moralidade. 
Quando digo que escreve futilmente o que escreve para a imortalidade, ou para as épocas futuras, deve entender-se que não pretendo com isso negar a sobrevivência da alma, ou até a sua imortalidade. Não nego nem afirmo; concedo. Mas nada disso pesa no meu argumento. A acção da literatura é sobre quem fica neste mundo — (e o astral do poema, ou da narrativa?...). 
— Engana-se, meu amigo, disse eu. Cada coisa neste mundo não é porventura senão a sombra e o símbolo de uma coisa (essa a verdadeira) em outro mundo antetípico ou espiritual. Não é pois a língua em que está escrito um poema que pesa no caso. É o poema que foi escrito nessa língua. E esse é uma entidade abstracta e real, agente sem corpo verbal. 
— Seja, respondeu o jornalista. Concedo sem admitir. 

Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A Inutilidade da Crítica


Que a obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor, se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por "destaca" quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sempre se destaca, no curso de sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro. 
Pois como há-de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio.
Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante dos seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastar-se-á em alguma coisa — e quanto mais original mais se afastará — das obras de arte do passado. Na medida em que o fizer, parecerá não se conformar com o cânone estético que o crítico encontra firmado no seu pensamento. E se a sua originalidade, em vez de jazer num afastamento daqueles velhos padrões, encontra-se num uso deles em linhas mais rigorosamente construtivas — como Milton usou os antigos — aceitará o crítico esse melhoramento como melhoramento, ou como imitação o uso daqueles padrões? Verá mais o construtor do que o utilizador de materiais de construção? Por que deveria ele fazer uma coisa em vez de a coisa melhor? É, de todos os elementos, a construtividade o mais difícil de determinar numa obra... Uma fusão de elementos do passado: verá o critico a fusão dos elementos? 
Persuadir-se-ia alguém de que se fossem publicados hoje o Paraíso Perdido, ou Hamlet, ou os Sonetos de Shakespeare e de Milton, lograriam eles cotação acima da poesia de Kipling ou de Noyes, ou a de qualquer outro cavalheiro semelhantemente quotidiano? Se alguém se persuadisse disso, seria um louco. A expressão é curta (?), não doce, mas pretende-se que seja apenas verdadeira. 
De todos os lados ouvimos o clamor de que o nosso tempo necessita de um grande poeta. O vazio central de todas as modernas realizações é uma coisa mais para se sentir do que para ser falada. Se o grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo? Quem pode dizer se ele já não apareceu? O público leitor vê nos jornais notícias das obras daqueles homens cuja influência e camaradagens tornaram-nos conhecidos, ou cuja secundariedade fez que fossem aceitos pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido; a sua obra teria sido noticiada nalgumas poucas palavras de vient-de-paraître em algum sumário bibliográfico de um jornal de crítica. 

Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'Tema(s): Crítica Literária  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Problema da Sinceridade do Poeta


O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem.
Aqui e ali o disse Wordsworth. Uma ou duas vezes o disse Coleridge; pois a Rima do Velho Nauta e Kubla Khan são mais sinceros que todo o Milton, direi mesmo que todo o Shakespeare. Há apenas uma reserva com respeito a Shakespeare: é que Shakespeare era essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceridade, de onde a sua grandeza. 
Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida. 
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo. 

Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'Tema(s): Poesia  Poeta  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A Arte de Representar


A base da representação é a falsidade. A arte do ator consiste em servir-se do drama do autor para mostrar por meio dele a sua capacidade de interpretação. A peça é como uma barra onde o actor mostra as suas habilidades ginásticas. É apenas limitado pelas condições necessárias de uma barra: pode fazer com ela apenas um número limitado de coisas, mas pode fazer de mil formas individuais. 
A representação, repito, tem todo o atractivo de uma falsificação. Todos adoramos um falsificador. É um sentimento muito humano e completamente instintivo. Todos adoramos a trapaça e a imitação. A representação une e intensifica, por meio do carácter material e vital das suas manifestações, todos os baixos instintos do instinto artístico — o instinto do enigma, o instinto do trapézio (...). É popular e apreciado por estas razões, ou antes, por esta razão. 
A sede de glória do artista é feita carne na sede de aplauso do actor. Todo o aparecimento em público é baixo. Todas as assembleias são multidões, e se não suadas de corpo, pelo menos suadas de emoções. 
Todos os espíritos grosseiros adoram falar. Ser falador é já por si vulgar. A única coisa que torna a verbosidade interessante é a profanidade e a obscenidade, pois estas coisas vão "a carácter" com ela. A verbosidade, sem palavras sujas e frases grosseiras é feminina e, portanto, vulgar. 

Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'
Tema(s): Actor  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sábio é Quem Monotoniza a Existência


Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinhiero monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas. 

Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"
Tema(s): Existência  Sabedoria  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A Sociedade é um Sistema de Egoísmos Maleáveis


A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens.
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente - até pelos indivíduos que, sendo também morais, o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tornar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém. 

Fernando Pessoa, in 'Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular'Tema(s): Sociedade  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa. Fernando Pessoa, in 'Ricardo Reis - Prosa' Tema(s): Sentidos Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa


Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. 
Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa. 

Fernando Pessoa, in 'Ricardo Reis - Prosa'
Tema(s): Sentidos  Ler outros pensamentos de Fernando Pessoa